CAMINHO DARWIN - 08/03/2020

Foto 1: início da caminhada.



O dia estava ensolarado e claro, assim como a temperatura bastante agradável, devido às chuvas que caíram durante a semana. Por isso, também a estrada de terra, mais úmida, não levantava tanta poeira com os poucos carros que passavam por nós, nas extremidades do roteiro, geralmente mais movimentadas.

Mesmo assim, para prevenir ainda mais esse problema, começamos a caminhada no entroncamento das ruas São Sebastião (ou do Vai e Vem) e Itália (foto 1), ao invés da Pracinha do Engenho do Mato, onde nos encontramos. Eram 8h30 e aquele lugar estava quase deserto.

Antes de continuarmos com esse diário de trilha, é preciso esclarecer que existem três definições para o que se convencionou chamar genericamente de Caminho Darwin - representação física do trajeto que o naturalista Charles Darwin, responsável por uma das maiores revoluções na ciência, teria trilhado em abril de 1832, entre o Rio de Janeiro e Cabo Frio (atualmente Conceição de Macabu). A mesma utiliza - independentemente de suas diversas denominações - ruas, estradas, avenidas e caminhos de terra, além de se sobrepor em determinadas vias de Niterói e Maricá, o que costuma provocar dúvidas e confusões.

Foto 2: grupo do Ecoando almoçando no Verdejante, em plena caminhada,  cinco meses após a inauguração do restaurante de orientação vegeto-lacto-ovo, que se deu em 1º de maio de 1998.


A primeira definição, o Caminho Darwin propriamente dito, diz respeito ao roteiro de caminhadas, ciclismo e cavalgada que atravessa o Parque Estadual da Serra da Tiririca, entre o Engenho do Mato, Niterói, e Itaocaia, Maricá, com aproximadamente 2 quilômetros de extensão. O mesmo está totalmente inserido no parque homônimo, subordinado ao Inea, instituições que fazem a sua gestão integrada, com a contribuição do Conselho Consultivo do Peset, da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos e Sustentabilidade de Niterói (SMARHS), de departamentos da UFF, como os de Turismo e Arquitetura, e da ONG Estação Charles Darwin. Nele se encontram placas indicativas (ou seja, que indicam os caminhos e atrativos do lugar), informativas (que oferecem informações variadas ao visitante) e restritivas (que anunciam proibições, como do tráfego de veículos automotores), além de uma subsede homônima (onde era o antigo restaurante Verdejante). O roteiro possui vários projetos ainda não implementados, como a construção de um portal no Engenho do Mato, estacionamento e outras benfeitorias, todas ainda no papel em função de diversos motivos, alguns dos quais meramente - e lamentavelmente - políticos.

A segunda, o Projeto Caminhos de Darwin, tem como foco um roteiro turístico multidisciplinar mais extenso, que interliga vários municípios fluminenses ao longo dos quais Charles Darwin passou em sua viagem a cavalo, em abril de 1832, a partir do Rio de Janeiro. O mesmo é fruto da parceria entre o Ministério da Ciência e Tecnologia, a Casa da Ciência da UFRJ, o Departamento de Recursos Minerais (DRM)/Projeto Caminhos Geológicos, instituições de ensino e pesquisa, ONGs, redes de ensino, representantes de governos municipais e voluntários. Está em implantação desde 2008 (para saber mais sobre o Projeto Caminhos de Darwin, clique em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000012180.pdf).

Foto 3: O casal Oscar Palácios e Maria Pia Mosto, os "bruxos" que faziam a magia do Verdejante acontecer.


Já a terceira definição, a Rota Darwin, trata-se de um roteiro para caminhadas e ciclismo, de aproximadamente 74 quilômetros de extensão, implementado através de uma parceria entre os municípios de Niterói e Maricá, em grande parte através de voluntariado, desde 2018. A Rota já integra o Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso, iniciativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) que visa a interligar o país de norte a sul através de percursos que podem ser feitos preferencialmente a pé ou de bicicleta, num total de 18 mil quilômetros, que conectarão diferentes biomas, como a Mata Atlântica. Além disso, tais trilhas têm como objetivo "reconhecer e proteger rotas pedestres de interesse natural, histórico e cultural, além de sensibilizar a sociedade para a importância do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)".

Explicada a diferença entre as definições locais do percurso por onde passou o naturalista involuntariamente revolucionário, podemos prosseguir em nosso relato.

Na subida da vertente niteroiense do caminho, mais íngreme do que a maricaense, diminuímos o ritmo, tanto para ninguém ficar cansado ou sem fôlego, quanto para aproveitarmos melhor a sombra da mata e o período mais agradável e fresco do dia.

Foto 4: o grupo que participou da caminhada do Ecoando, em outubro de 1998, com parada no Verdejante (ao fundo). O difícil foi voltar a caminhar depois da comilança.


Chegamos ao antigo restaurante Verdejante, hoje Núcleo Darwin do Peset, por volta das 9h30, onde encontramos um solitário e simpático guarda-parque em sua função de orientar e vigiar as instalações daquilo que já foi uma referência em gastronomia vegetariana na Região Metropolitana do Rio. História essa que este autor vivenciou como frequentador e guia, desde próximo a sua inauguração (fotos 2 e 3) até pouco antes de seu fechamento. E que foi compartilhada com o grupo, durante a visita que fizemos do que sobrou desse templo de deleites gustativos. A síntese vai abaixo.

O Verdejante foi inaugurado em 1º de maio de 1998, pouco depois da compra do sítio pelos artistas plásticos argentinos Maria Pia e Oscar Palácios (foto 3), que pretendiam viver ali com mais qualidade, sossego e maior contato com a natureza.

Foto 5: nova visita do Ecoando ao Verdejante, em janeiro de 2005, mais aprimorado, bonito e bem cuidado.


Havia duas casas na propriedade. Naquela mais próxima à Estrada do Vai e Vem (ou Estrada da Barrinha, na denominação oficial daquilo que passou a ser mais conhecido como Caminho Darwin), instalaram o restaurante (foto 4). Na outra, mais privativa e afastada do movimento de pessoas, fizeram sua moradia. Ficaram lá, juntos, por 11 anos, até o falecimento de Oscar, em 2009, de câncer. Maria Pia ainda resistiu sozinha por mais tempo, até 2012, quando o sítio foi desapropriado pelo Inea.

Mas o restaurante funcionou mesmo até 2010, alternando períodos de muito sucesso com outros de grandes dificuldades, em função dos problemas de acesso (estrada intransitável em épocas de chuva, por exemplo), de mão de obra e de saúde. Importante lembrar que, embora tivessem grande energia, jovialidade e disposição, o casal era idoso.

Nos períodos de prosperidade (foto 5), o restaurante de orientação vegeto-lacto-ovo recebia intelectuais, artistas, músicos, críticos em gastronomia e pessoas de várias nacionalidades, além da clientela que já era habitué do local, vinda de todos os cantos de Niterói, Rio e arredores. Todos em busca da experiência única e quase transcendental que era estar, comer e beber no Verdejante (foto 6). E também ler livros variados (que ficavam disponíveis na rica biblioteca do restaurante), apreciar as inúmeras obras de arte produzidas pelo próprio casal, relaxar em redes nas árvores do quintal, tomar banho de chuveirão, cochilar em esteiras no gramado, etc.

Foto 6: Maria Pia, a chef que comandava o restaurante Verdejante original, que ficava onde hoje é o Núcleo Darwin do Parque Estadual da Serra da Tiririca. Estar no Verdejante era muito mais do que uma experiência gastronômica, pois unia receitas doces e salgadas, frias e quentes, com natureza, arte, intelectualidade, sensibilidade e hospitalidade. Autoria desconhecida.


Essa vivência, que para muitos durava uma tarde inteira, tinha preço único, o que dava direito ao sistema self-service de pratos frios e sobremesas (foto 7), além dos pratos quentes e acesso a todas as áreas comuns do sítio (foto 8). Ou seja, o cliente podia comer o quanto quisesse, a hora que quisesse (o restaurante abria às 12h e fechava após a saída do último cliente, geralmente em final de tarde dos sábados e domingos), da forma que lhe aprouvesse e ainda ter direito à experiência de contato e relaxamento com a exuberante natureza local.

Foto 7: Maria Pia ao lado de suas obras de arte gastronômicas. A chef também é artista plástica de renome. Autoria desconhecida.


Depois de passar pelo sempre florido portão de entrada do restaurante, o visitante atravessava a varanda, onde, além das mesas, havia murais com motivos silvestres pintados por Oscar Palácios dando as boas vindas.

Foto 8: quintal do Verdejante, onde o chefe do Peset à época (janeiro de 2005), Nestor Prado, explanou para grupo do Ecoando sobre a importância da parceria entre o restaurante e a unidade de conservação.


Na antessala, à direita de quem entrasse na casa, ficava a mesa com as refeições frias, em torno de 15 - como saladas, quiches, tortas, terrines e flans salgados, molhos diversos e chutneys. Ao lado desse convite à gula, mais um mural de Oscar e uma porta que ele aproveitou como tela para outra pintura de caminhos, matas, flores e pássaros.

Nos dois quartos da antiga casa, de janelas amplas e com acesso pela mesma antessala, ficavam dispostas outras mesas, cercadas de quadros do casal e cerâmicas de Maria Pia. Num desses cômodos, que davam vista para o quintal arborizado e florido, a biblioteca ficava num canto e a mesa de sobremesas no outro. Assim, entre uma refeição e outra, o cliente podia apreciar obras de arte, ler ou curtir a paisagem. E, claro, conversar com os próprios artistas, quando em momentos de menor movimento.

Foto 9: alguns dos pratos salgados servidos no Verdejante. Autoria desconhecida.


Aliás, esse era outro grande atrativo do Verdejante, prosear com Maria Pia e Oscar. Seja pelo carisma e simpatia dos dois, seja pela rica cultura geral e inteligência de ambos.

Além dos pratos frios, havia também os quentes, feitos na hora, a pedido - como pissaladière, crespelles, seitan a milanesa e outras delícias da culinária vegetariana internacional (foto 9). Os sucos, também feitos na hora, eram de frutas selecionadas e frescas, a carta de vinhos variada e o mate delicioso e sempre geladinho.

Era difícil parar de comer e ainda deixar um espaço no estômago para as sobremesas, entre elas: mil-folhas com creme de amêndoas, suflê de limão siciliano, tortas, morangos no suspiro, pudins, etc. (foto 10).

Foto 10: alguns dos doces servidos no restaurante. Autoria desconhecida.


Atrás do restaurante havia mesas sombreadas por pitangueiras e outras frutíferas, algumas ornadas com orquídeas em flor, além das redes, bancos e esteiras, que ficavam à disposição dos clientes. Se houvesse alguma fruta no pé e espaço na barriga, elas podiam ser colhidas e comidas na hora. Também existia uma hortinha de ervas aromáticas, mas essas eram de uso exclusivo da cozinha. A grande variedade de pássaros, alguns coloridos e outros tantos canoros, complementavam a delícia do cenário.

Tinha gente que aproveitava esse espaço para se deitar e esperar a saciedade passar, para então recomeçar a comilança. Já outros caminhavam pelas trilhas do quintal e pelas imediações do restaurante, quase sempre com o mesmo objetivo.

Com o falecimento de Oscar, a viúva não conseguia mais manter sozinha as atividades do restaurante, que por isso foi abrindo só de vez em quando até 2010, quando fortes chuvas obrigaram o fechamento do negócio. Daí, quando o Inea elaborou o projeto de desapropriação de imóveis ao longo do Caminho Darwin, escolhendo o seu sítio como o primeiro da lista, Maria Pia se sentiu aliviada. Embora a indenização paga pelo Governo do Estado ficasse abaixo do preço de mercado da propriedade, ela pôde comprar uma casa em Itaipuaçu e transferir para lá uma fração do que fora o Verdejante. O mesmo também deixou de funcionar há alguns anos, por causa da idade avançada de Pia e de seus problemas de saúde.

O restaurante original e muitas das benfeitorias do sítio sofreram um processo de degradação, entre a desocupação por sua antiga proprietária e a efetiva ocupação pelo Peset. O mato cresceu, itens das casas foram roubados, paredes mofaram e tudo degradou-se. Somente em 2019, equipes do parque passaram a permanecer 24h no lugar e a buscar recuperá-lo de forma mais sistemática. Ainda há muito o que se fazer, mas o que foi reconquistado pelo trabalho de guardas-parque e voluntários já permite uma visitação de qualidade e o resgate da rica história do restaurante e do casal que o criou. Para quem quiser saber mais sobre o Verdejante, além de ver mais fotos, indicamos os seguintes links: http://www.overmundo.com.br/guia/restaurante-verdejante e https://www.facebook.com/verdejanteveggourmet/media_set/?set=a.1036557579718149.

Depois de visitar a exposição sobre a viagem do Beagle e a trajetória de vida de Darwin, exposta em painéis na sala onde ficava a biblioteca e a mesa de doces , seguimos em direção à Fazenda Itaocaia, passando por mirantes, o dique de basalto (rocha vulcânica de aproximadamente 150 milhões de anos) que corta a estrada e conta a história da separação entre as placas tectônicas Africana e Sul Americana, e trechos bem preservados de mata (foto 11).

Foto 11: trecho bem preservado e sombreado pela mata.
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No entanto, ao ouvir o som característico de motos de trilha, vindo de nossa retaguarda, pedi para que os caminhantes saíssem imediatamente do caminho, para não serem atropelados.

Embora essa prática seja proibida em unidades de conservação de proteção integral estaduais, como o Peset (onde há placas informando sobre essa proibição), passaram por nós mais de 20 motos fora-de-estrada (foto 12), aparentemente integrantes de uma empresa especializada em formar motociclistas de enduro. Nada pudemos fazer senão aguardar - enfiados no mato ao lado da trilha, ouvindo aquele barulho ensurdecedor e respirando a fumaça emitida - aqueles destruidores de trilha passar. E reclamar com os que sequer diminuíam a velocidade quando passavam a poucos centímetros de nós. A denúncia foi devidamente encaminhada ao setor de fiscalização do Peset, que se comprometeu a tomar as medidas cabíveis contra os responsáveis.

Foto 12: a ilegal prática do enduro de motos no Caminho Darwin, apesar das placas proibindo tal prática no Parque Estadual da Serra da Tiririca.


Superado o estresse desse impertinente encontro, voltamos à nossa paz e às explanações sobre a riqueza cultural, histórica e ecológica do lugar. Muitas dessas informações, especialmente sobre a vida e trajetória de Darwin, encontram-se no link já citado acima (e agora repetido: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000012180.pdf).

Um grupo de praticantes de hipismo, bem mais integrados à dinâmica e à história do lugar, além de mais cordiais, também passou por nós, na ida e na volta. Interessante notar que, justamente pelo fato de Darwin ter passado por ali a cavalo e esta ser uma prática consolidada na região (há vários haras no Engenho do Mato), o plano de manejo do Peset, publicado em 2015, a permite no local. O que contrasta com as regras de uso público da maior parte das outras unidades de conservação de proteção integral estaduais, que a proíbem.

Foto 13: o grupo entrando na Fazenda Itaocaia.


Chegamos à Fazenda Itaocaia (foto 13), às 10h, exatamente no horário combinado com o responsável pela visitação. No entanto, como ainda demoraria algum tempo para este se liberar de afazeres operacionais e também pelo fato haver uma participante com compromisso posterior à caminhada, lanchamos onde era o antigo engenho e partimos, sem a visita guiada pelo proprietário. Para compensar, repassei eu mesmo informações históricas sobre a propriedade (que podem ser acessadas na página do Geoparque Costões de Lagunas do Estado do Rio de Janeiro, em: https://www.facebook.com/geoparquecostoeselagunas/posts/3033526636711965).

No retorno, já na vertente do Engenho do Mato, visitamos a Nascente Darwin (foto 14), que passamos batidos na ida por causa do horário da visitação da fazenda. Tal atrativo trata-se de um olho d'água, ou seja, uma nascente onde o lençol freático apenas aflora à superfície, sem escoar. A mesma, que é também um ponto de interesse geológico, do Departamento de Recursos Minerais (DRM-RJ, que explica em placas sobre sua dinâmica), foi mapeada e revitalizada, no início de 2018, numa parceria entre o Peset e a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Niterói, dentro do Projeto Água Escondida.

Foto 14: grupo na Nascente Darwin, aproveitando a sombra da mata para descansar e prosear.


A trilha até a nascente é muito agradável, por ser quase totalmente sombreada e bem preservada. Nela, além das placas de educação ambiental e geológica, há simpáticos bancos rústicos de madeira, onde nos sentamos para apreciar a beleza do cenário e aproveitar o frescor do mata durante uns 15 minutos.

No retorno ao Andarilho (a minivan do Ecoando), notamos que o restaurante em frente de onde o estacionamos, estava aberto e oferecendo um irresistível aroma de comida bem feita. Foi a desculpa que queríamos para entrar e celebrar a atividade e as boas companhias com comes e bebes (foto 15).

Foto 15: grupo confraternizando no restaurante do Miguel, dono da rede Batipatu. Foto do próprio Miguel.


Pedimos pastéis, cervejas e refrigerantes, já que não poderíamos demorar, como já foi explicado. E aprovamos não só a cozinha, mas a nova gerência do lugar, do Miguel, que comanda a famosa rede de restaurantes Batipatu, em Niterói.

Figura muito simpática e falante, dele ganhamos várias ervas aromáticas, que são plantadas no quintal do restaurante. E deixamos para experimentar o bobó de camarão numa próxima vez, com mais folga no horário.

Deixei o pessoal na Pracinha do Engenho do Mato às 12h30, para seguir para suas casas em transporte público ou de aplicativo.

Valeu por esta domingueira deliciosa, pessoal!

Veja mais fotos desse e de outros passeios do Ecoando, em: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/.

Abraços,

Cássio Garcez
Coordenador

P.s.: agradeço as informações prestadas pelo André Costa, funcionário do Peset, pelo Felipe Queiroz, ex-funcionário da mesma unidade de conservação (afastado de forma incompreensível no final do ano passado, supostamente por motivos políticos), e pela própria Maria Pia.

Fotos: Cássio Garcez (exceto quando indicado em contrário).

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