CASTELOS DO CAMINHO DA PIEDADE - 31/08/2019

Foto 1: grupo no alto dos Castelos da Piedade, elevação mais conhecida como Mirante do Imperador.

O dia estava esplendoroso em luminosidade e nitidez de paisagens, obra de uma frente fria que havia limpado o ar nos dias anteriores. E cuja seguinte, prevista para chegar apenas amanhã, já oferecia um de seus claros prenúncios: um vento muito forte desde que chegamos à zona rural de Itaguaí até alguns minutos antes de descermos do conjunto de pedras, cuja denominação mais famosa é Mirante do Imperador.

No caminho de ida, por falta de boas paradas para banheiro e lanche, fizemos um tour inesperado pelo Centro de Itaguaí, o que valeu à pena, já que achamos uma padaria bem honesta e asseada.

Eram pouco mais de 8h quando começamos a caminhada, ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Santana, em Raiz da Serra de Itaguaí, onde estacionamos o Andarilho (a minivan do Ecoando). Em poucos minutos, chegávamos ao calçamento do histórico e bem preservado Caminho Novo da Piedade - via colonial também conhecida pelos nomes de Estrada Real da Serra da Calçada, Caminho da Independência, Caminho de São Paulo e Caminho da Piedade (foto 2).

Tal caminho, como eu explicaria aos participantes ao longo da subida, começou com uma trilha aberta por bandeirantes, tanto no desbravamento da Serra de Itaguaí quanto na sua busca pelo ouro, provavelmente entre o final do Século XVII e início do Século XVIII.

D. João V, rei de Portugal, oficiado pelo governador da Capitania de São Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, sobre a necessidade de se abrir um caminho por terra que evitasse o arriscado trajeto marítimo de Paraty até Sepetiba, para envio do ouro descido das Minas Gerais, ordena ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, João Vahia Monteiro, através de carta enviada a ele no dia 5 de novembro de 1728, a construção de uma estrada em sua jurisdição. Para tanto, Vahia concede mais de uma centena de sesmarias em troca da obrigação dos sesmeiros em cultivar a terra e auxiliar na execução daquela empreitada.

Ou seja, esta seria a terceira Estrada Real construída na colônia, além do Caminho Velho (entre Paraty e as Minas Gerais) e do Caminho Novo (obra de Garcia Paes, inaugurada em 1704, que contou com um atalho, implantado por Bernardo de Proença, em 1724). A mesma "tinha início na Fazenda Santa Cruz, passava por São João Marcos, Bananal, São José do Barreiro e Areias, contornando a Serra da Bocaina e alcançando o caminho dos paulistas no Vale do Paraíba, na Freguesia de N. Sa. da Piedade, situada a apenas duas léguas da Vila de Guaratinguetá" (REIS, apud COSTA, 2005, p.86). Daí a razão de dois de seus nomes: da Piedade e de São Paulo.

A cidade de São João Marcos - sobre a qual eu contaria sua estarrecedora história aos participantes, mais tarde (e a qual visitaríamos em outro roteiro, no sábado seguinte - a Estrada do Atalho e Cachoeira dos Escravos) - surgiria a partir de uma capela construída na fazenda de um desses sesmeiros, João Machado, em 1739, fato esse indissociavelmente ligado à construção da estrada.


Foto 2: caminhada sobre o calçamento centenário do Caminho Novo da Piedade.



Voltando ao relato da caminhada, em função do vento, recomendei ainda mais atenção aos caminhantes, passando a eles dicas de segurança para o caso de queda de galhos.

Subimos lenta e contemplativamente aquela verdadeira obra de arte da engenharia setecentista, apreciando suas técnicas construtivas, que aparentemente iam se refinando à medida em que subíamos mais.

Seria essa diferenciação obra do acaso ou aperfeiçoamento da técnica de seus construtores? Só historiadores e especialistas nesse campo de saber poderão responder a tal pergunta. Ou talvez ninguém, pois se ainda existirem registros dessas técnicas de campo, elas devem ser bem pouco acessíveis.

Desde a Estrada do Caçador - a via de terra batida que dá acesso a Raiz da Serra e que é parte descaracterizada do Caminho da Piedade -, notamos uma mancha colorida colada ao conjunto de rochas sobrepostas, as mesmas que nos inspiraram a batizar o roteiro de forma diversa àquela mais popular, seguindo a nomenclatura geomorfológica (que as designa como "castelos", à semelhança dos castelinhos de areia de beira da praia).

Chutei: "deve ser um ipê-roxo florido". E, bingo! Acertei na mosca!

Assim, quanto mais subíamos, mais confirmávamos essa avaliação, que foi finalmente encerrada quando chegamos lá em cima e demos de cara com aquele buquê gigantesco e emocionante (foto 3).

Foto 3: o ipê-roxo, colado aos Castelos.


Antes disso, porém, às 9h30, atingíamos a antiga casa de farinha. Este local, onde há uma roda d'água de ferro no chão, marca o final do trecho mais preservado do calçamento. Depois dali, a mata fecha, há trechos mais erodidos e riachos que cruzam seu traçado até a saída da trilha para os Castelos.

Em algumas paradas, eu continuava a compartilhar com os caminhantes passagens da rica história daquela via. Assim, além dela ter criado um acesso mais seguro ao transporte do ouro das Minas Gerais e das minas de Cuiabá para o Rio de Janeiro, também escoou o café de parte da região do Vale do Paraíba.

E mais: a mesma deu passagem a D. Pedro I indo e voltando da Proclamação da Independência - razão da adoção de mais uma de suas denominações: Caminho da Independência. Que acabou também inspirando o nome mais popular dos Castelos: Mirante do Imperador (embora seja certo que o monarca jamais tenha subido até aquelas formações rochosas).

Mais adiante, pegamos a trilha que passa entre as mangueiras que marcam a direção que se deve seguir para chegar aos Castelos. Pena que grande parte delas esteja morrendo, provavelmente devido à praga que vem se alastrando por essas frutíferas Estado afora.

Após passarmos pelo sítio que confirma o caminho correto, entramos em um trecho de mata que pertence às RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural) Angaba e Porangaba, ambas de propriedade do pesquisador Jurgen Dobereiner, intelectual que foi casado por mais de 50 anos com a pesquisadora tcheca Johanna Döbereiner, responsável pelo trabalho que desenvolveu e transformou o Brasil no segundo maior produtor de soja e o qual lhe rendeu a indicação ao Prêmio Nobel de Química, além de outras premiações.

Por volta das 10h45, chegávamos ao ponto de sela (vale alto entre dois morros) de onde sai a trilha para os Castelos, à esquerda. Subimos por alguns minutos, até chegarmos a outra cumeeira, desta vez no contraforte da Serra da Calçada, que nos levaria em pouco tempo ao conjunto de rochas cujo topo é acessado através de uma escada artesanal.

Na realidade, eram duas escadas, uma "quebra-peito", mais antiga e em processo de degradação, certamente colocada ali por algum centro excursionista. A outra, bem mais recente, artesanal e mais confiável, feita de troncos e galhos presos por pregos, ficava sobre a seção mais arruinada da anterior.

Embora eu tivesse levado corda e cadeirinha para dar mais segurança aos participantes nesse único obstáculo do roteiro (o qual justificou o nível de dificuldade 6 ao invés do 5), ninguém quis usá-las. Por isso e para dar alguma utilidade a esse material (além de não apenas trazê-lo para "passear" na montanha), instalei a corda em trecho de descida, a seguir, o que ajudou de forma um tanto quanto cosmética na segurança. Mas já era alguma coisa...

Encontramos uma família lá em cima e já de saída, com duas crianças pequenas, público que vem crescendo no cenário excursionista. Por um lado, muito legal essa apresentação precoce do ambiente natural aos pequenos, desenvolvendo desde muito cedo o gosto pelo montanhismo e por seus ensinamentos. Mas, por outro, em alguns casos - como de crianças muito novas e até bebês (!!!) em trilhas mais exigentes e demoradas - uma irresponsabilidade tremenda. Felizmente, não era esse o caso ali.

Assim como da última vez em que estivemos lá, no ano passado, as paisagens estavam extraordinárias (foto 1). Víamos o Maciço da Tijuca, as serras do Mendanha, da Pedra Branca, do Tinguá, das Araras e outras, além da Baía de Sepetiba, a Restinga de Marambaia e as zonas urbanas de Itaguaí, Santa Cruz, Campo Grande, Seropédica, Queimados, Nova Iguaçu e até Duque de Caxias. Identificamos ainda o hangar do Zepelin (foto 4), que atualmente fica na Base Aérea de Santa Cruz. Apenas a Serra dos Órgãos estava mais difícil de se ver, em função da névoa misturada à poluição da Baixada Fluminense, que sempre interfere na visão das paisagens daqueles lados.

Foto 4: o hangar do Zepelin, na baixada onde se situam o bairro carioca de Santa Cruz e o município de Itaguaí.


Nos primeiros instantes neste topo de rocha, era preciso ficar longe de suas bordas devido ao vento, que continuava forte. O que não foi ruim, pois assim pudemos ficar embaixo do sol sem nos sentirmos tostando.

Depois de muito apreciarmos as paisagens, tirar fotos, relaxar e lanchar, já na hora de ir embora sugeri fazermos o exercício do silêncio, que o grupo já parecia estar aguardando. Curiosamente, o vento tinha começado a diminuir nesse momento, potencializando ainda mais a vivência. Começamos o retorno por volta das 12h30, já sem vento algum. De volta à Estrada Real, chegamos a sentir saudades da ventania, devido ao calor.

Tanto que tivemos que parar para nos refrescar no córrego que devia alimentar a roda d'água de ferro da casa de farinha. Até ali, tínhamos levado pouco mais de uma hora, o mesmo tempo que levaríamos para chegar ao Andarilho.

Pegamos a Estrada do Caçador às 15h, horário recorde de saída de Raiz da Serra de Itaguaí. Mérito do grupo caminheiro, de passo fluído e de bons fôlego e preparo físico.

Aproveitamos para parar num fast-food de comida árabe, cujo atendimento deixa bastante a desejar. Por sorte, o ponto de gelo da cerveja (para aqueles que podiam beber, é claro) e a qualidade de alguns petiscos, valeram a parada. E também os banheiros, bem limpos, é justo reconhecer.

Chegamos a Niterói às 17h30, sãos e salvos, depois da corrida de obstáculos que está a Avenida Brasil. Problema este que muitos dos participantes sequer se deram conta, por terem dormido a maior parte da viagem. Sinal flagrante da confiança na direção deste motorista. Se for isso mesmo, agradeço a fé neste outro ofício do guia!


Até a próxima trilha!

Cássio Garcez
Coordenador e guia do Ecoando

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