ESTRADA DO ATALHO E CACHOEIRA DOS ESCRAVOS - 07/09/2019
Foto 1: caminhantes no Mirante do Imperador, na estrada de mesmo nome. |
O dia
estava ensolarado e bastante límpido, em razão das chuvas que caíram com
vontade até a antevéspera desse passeio, que estreava nesta data na programação
do Ecoando.
Por isso
mesmo e pela possibilidade de o calçamento de pedras cabeça-de-negro da Estrada
do Atalho estar perigosamente escorregadio, deixei facultativa a participação de
quem já estava inscrito nessa atividade. Por sorte e mérito, o grupo formado só
por mulheres e acima dos 50 - as "meninas superpoderosas", como
passei a denominá-las -, não arregou.
Assim,
depois de uma viagem tranquila pela caótica Avenida Brasil e parte da BR 101, chegamos
por volta das 8h às ruínas do Saco, localizadas no bairro de Nova Mangaratiba,
no município homônimo, visitando cada uma daquelas construções remanescentes da
época do café (foto 2).
Tais ruínas
fazem parte de um povoado que floresceu de forma quase independente da Vila de
Mangaratiba, embora fosse parte integrante e subordinada a esta. Consta que lá
havia porto (fluvial), casas senhoriais, armazéns, entrepostos de café e
possivelmente até um teatro onde o dramaturgo João Caetano se apresentou às
famílias dos barões, entre outras construções.
Com a
inauguração da Estrada de Ferro D. Pedro II, a queda do preço do café no
mercado internacional e a abolição da escravidão, entre outros motivos, o
povoado foi abandonado, transformando-se numa espécie de cidade fantasma, já
que dependia totalmente da estrada que ia até o alto da serra. Isso acabou
preservando, pelo menos em parte, algumas daquelas paredes construídas por
escravos. Embora muitas delas estejam hoje ameaçadas pelo avanço da urbanização
e de favelas.
Essas e
outras histórias eu ia contando ao grupo, como introdução à empreitada da
construção dos dois caminhos concorrentes, em 1855, com o objetivo de melhorar
o escoamento da produção cafeeira, à época à pleno vapor. E cujo o mais antigo,
hoje chamado de Atalho, iríamos começar a trilhar daí a alguns minutos.
Por falta
de lugar que inspirasse confiança para estacionar o Andarilho (a minivan do
Ecoando), em Nova Mangaratiba, seguimos a bordo dele pelo trecho plano da
Estrada do Atalho até o início da subida da serra. Muita gente se queixou disso
e com razão, por querer usufruir a pé da beleza desse começo de percurso. Quem
sabe de uma próxima vez não consigamos um bom estacionamento para corrigir essa
falta?
Após
atravessar com sucesso o riacho pedregoso que corta a estradinha de terra (a
qual esconde o calçamento centenário) - temerário para um carro sem tração nas
quatro rodas (foto 3) - estacionamos numa casa onde eu havia pedido permissão prévia
para sua proprietária no reconhecimento deste roteiro, há algumas semanas. Às
8h30 iniciávamos finalmente a bela subida.
Foto 3: o Andarilho (a minivan do Ecoando) se preparando para atravessar o riacho que corta a Estrada do Atalho. |
Este
primeiro trecho em aclive é talvez o mais bem conservado de toda a Estrada do
Atalho, com seu calçamento caprichosamente assentado, nivelado e manutenido, sem
vegetação invasora em seus quase 6 metros de largura. Possível contribuição da
prefeitura de Mangaratiba, que vem fazendo intervenções esporádicas de
manutenção dessa via, justamente com o intuito de incrementar o turismo
histórico na região. Louvável iniciativa!
No local
onde existiu uma venda, segundo o Instituto de Arqueologia Brasileiro, ofereci
ao grupo adentrarmos a trilha que acessava piscinas naturais do Rio da Lapa,
aquele que corre ao lado da Estrada do Atalho desde o alto da serra. É claro
que todas as participantes toparam.
Levamos
menos de 15 minutos até o rio, onde havia algumas pessoas pescando piabas,um
bom bioindicador da qualidade daquelas águas (que, embora cristalinas, passam
por algumas áreas habitadas, o que costuma ser problemático). Mas, como estávamos
apenas iniciando a atividade e a temperatura ainda estava bem amena, ninguém se
animou a mergulhar. Desta forma, retornamos sem demora à subida.
Ao longo do
caminho de pedras (foto 4), ora parávamos para apreciar a beleza da construção daquela
estrada, ora para identificar sítios de calceteria (de onde eram retiradas as
pedras do calçamento, de muros de contenção e de outras benfeitorias) e ora
para eu repassar ao grupo a incrível história desse e do outro caminho que foi
construído na mesma época, concorrentemente. E que resumirei de forma bem
sintética a seguir.
Com a
vertiginosa ascensão do café desde o final do Século XVIII e a multiplicação de
fazendas no Vale do Paraíba, em especial na cidade de São João Marcos, era
necessário construir uma estrada que fizesse a ligação mais curta e eficiente
dessas regiões produtoras a um porto. A solução encontrada foi aproveitar
antigas trilhas indígenas e de tropeiros, construindo uma estrada entre aquela
cidade e Mangaratiba, já no início do Século XIX. Seu construtor, o Sargento
Mor Joaquim de Souza Breves, iria se tornar alguns anos mais tarde o maior
escravagista e o maior cafeicultor de seu tempo.
No entanto,
com o aumento do trânsito de tropas carregadas com o café, esta estrada teve
que ser melhorada em vários momentos, como em 1833, 1837 e 1850. O arrematante
desse último contrato assinado com a Província do Rio de Janeiro, Bernardino José
de Almeida, acabou falecendo no final de 1554 e deixando para sua esposa -
Josefa Francisca - o direito de continuar construindo a estrada, já a partir do
dia 4 de janeiro do ano seguinte.
No entanto,
por motivos obscuros e um tanto suspeitos, em menos de dois meses após ter dado
autorização de continuidade das obras à viúva, a Província celebra outro
contrato, desta vez com uma companhia de poderosos empresários e cafeicultores,
para a construção de uma nova estrada. A mesma, chamada de Estrada de
Mangaratiba, seguiria ora correndo paralela àquela a cargo de Josefa e ora sobre
trechos da mesma!
A possível
razão dessa esdrúxula duplicidade de contratos, segundo a historiadora e
arqueóloga Miriam Bondim (estudiosa que fundamenta grande parte das informações
históricas aqui apresentadas, inclusive a descoberta do nome da viúva de
Bernardino, que só era identificada nos documentos oficiais através desse seu
estado civil), seria a demora em se retomar as obras. Mas é possível imaginar
uma série de outras motivações, todas muito suspeitas, em se tratando de um eixo
de ligação por onde passava grande parte das riquezas de um país agrário,
corrupto e dominado por figuras que se colocavam acima da lei.
Mesmo com a
pressão, os embargos judiciais e as brigas entre Josefa e o desembargador
Joaquim José Pacheco, o presidente da tal Companhia, a viúva consegue concluir
sua estrada, se defender das inúmeras tentativas de sabotagem e de depreciação
de sua obra, garantir seu direito à indenização pelo que tinha feito e escapar
da ficar no prejuízo, com a falência daquela sociedade anônima. Uma senhora
vitória de Josefa, haja vista o poderio econômico e político dos acionistas reunidos
em interesses antagônicos aos dela, entre eles o Barão de Mauá, o comendador
Joaquim de Souza Breves e a própria Província.
No final
das contas, em 1857, a
Estrada de Mangaratiba é inaugurada e a de Josefa interditada (devido aos
direitos de exclusividade da Companhia sobre o trânsito e pedágio, segundo
Bondim), legando à posteridade duas belas vias imperiais, uma delas totalmente
preservada pelo desuso.
Esta
estrada, onde caminhávamos com cuidado sobre seu calçamento, veio a ser
conhecida popularmente como Atalho, por ser mais curta que sua irmã mais
afortunada, a qual passou ser conhecida como Estrada Imperial - embora ambas
mereçam esta classificação.
Só essa
história já teria valido toda a caminhada. Mas havia muito, muito mais a
conhecer, vivenciar e a encantar as visitantes.
Entre esses
outros atrativos, estavam as vistas do anfiteatro natural da Praia do Saco a
partir de mirantes tanto da Estrada do Atalho quanto da Estrada Imperial, além
da beleza das matas e da visita a recantos misteriosos (como algumas das
dezenas de sepulturas ao longo de alguns trechos do Atalho).
Saímos da
Estrada do Atalho por uma trilha que faz a sua ligação com a Estrada Imperial,
uma daquelas que devem ter sido intensamente utilizadas por trabalhadores da
Companhia para acessar suas obras e talvez roubar algumas pedras de Josefa.
Eram quase 11h, quando alcançamos o asfalto e fomos em direção ao Mirante
Imperial.
Satisfeitos
em apreciar as belas paisagens vistas dali, continuamos por esta estrada até a
Pousada Mirante Imperial, onde mais tarde seu proprietário, o fisioterapeuta Marcelo
Porto, faria uma interessantíssima apresentação sobre algumas da terapias
sonoras de vanguarda ali desenvolvidas. Por hora nosso objetivo era chegar ao
Empório da Barreira, misto de restaurante, centro espontâneo de informações
turísticas e cafeteria, que alcançamos às 12h15, depois da visita a outro recanto
do Rio da Lapa, este mais encachoeirado.
No Empório,
deixei facultativo a quem quisesse encerrar ali o trecho à pé da atividade, já
que passaríamos na Cachoeira dos Escravos, objetivo final da caminhada, de
carro, daí a algumas horas. Duas participantes assim preferiram, aguardando a
mim e à outra inscrita completarmos o percurso originalmente planejado.
Como era
pertinho, não levamos mais do que 30 minutos para ir e voltar. No entanto, a
decepção de minha acompanhante, legítima, com a Cachoeira dos Escravos - que
nada mais é do que um pequeno córrego que corre por uma canaleta rochosa ao
lado da Estrada Imperial - me lembrou sobre a necessidade em se alertar aos
participantes a respeito da singeleza desse atrativo. Justamente para não se
criar falsas expectativas e frustrações, embora eu particularmente achasse que
este atrativo valesse à pena, mesmo não sendo monumental. No final das contas,
a caminhante achou o mesmo.
No retorno
e depois de apreciarmos a beleza do Bebedouro da Barreira (foto 5), onde os
tropeiros e condutores de caleças (um tipo de carroça) davam de beber a seus
animais enquanto acertavam o pedágio que existia ali (o primeiro do Brasil,
segundo o Instituto de Arqueologia Brasileira), partimos para encontrar as
colegas e almoçar. E também para este guia retornar sozinho pelo mesmo caminho
da subida para resgatar o Andarilho, em menos de 40 minutos de caminhada fluída
e cautelosa (já que na descida os tombos costumam ser mais frequentes).
Em mais 20
minutos, estávamos eu e o Andarilho de volta à companhia das meninas
superpoderosas, que agora estavam também mais alegres, em função das cervejas
sorvidas a título de celebrar a bela caminhada e de arrefecer o inesperado calor.
Como o
tempo não espera e o Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos fechava
às 17h, tivemos que ser rápidos, pois já passava das 15h30 quando conseguimos
nos apartar das delícias do Empório. Mesmo no laço, foi possível apreciar com
tranquilidade as paisagens rurais e históricas desse outro trecho da Estrada
Imperial, acima da Serra do Piloto.
Chegamos ao
Parque às 16h, com as participantes já cientes da dramática história de São João
Marcos, que fui contando a elas pelo caminho. Para fixar ainda mais as
informações, assistimos ao bem elaborado documentário da Light a esse respeito,
o qual disponibilizo aqui, para também encurtar este já longo diário de trilha:
https://www.youtube.com/watch?v=jKGLq8nM8Hc.
Na
sequência, fomos visitar o sítio histórico resgatado dos escombros por equipes
multidisciplinares de arqueólogos, historiadores, arquitetos, geólogos, etc., integrantes
das várias instituições envolvidas nesse trabalho monumental da Light, como
Iphan, IAB, Inepac, entre outros. E que surpreende não apenas por evocar a
inacreditável, breve e intensa história daquela cidade, mas também por sua
beleza inspiradora e os ensinamentos que dali brotam.
Por sorte,
os mulungus - espécie de árvore nativa de Mata Atlântica que abunda ali, sem
explicação convincente - estavam floridos, salpicando de vermelho vivo a
paisagem e tornando a paisagem ainda mais cinematográfica.
Mesmo com o
tempo de visita já no final, conseguimos conhecer os pontos mais marcantes da
antiga cidade (foto 7), retornando ao centro de visitantes já em cima da hora
do fechamento do Parque. No entanto, ainda conseguimos tomar um café com bolo
na cantina comandada com simpatia e competência pelo casal Thina e Ney,
ajudados por sua filha. Aproveitamos também para comprar quitutes, como
goiabadas e geléias.
Foto 7: caminhantes em frente às ruínas da antiga Igreja Matriz de São João Marcos, com os mulungus floridos ao fundo. |
No retorno,
passamos novamente no Empório da Barreira para buscar os queijos comprados mais
cedo com a Lucimary e nos despedirmos de nossa anfitriã. Mas ainda havia uma
última atividade, ali perto, na Pousada Mirante Imperial.
Como
prometido, o Marcelo fez uma breve e marcante demonstração da eficácia da
acupuntura sem agulha em cada um de nós, potencializando ainda mais o
relaxamento da caminhada.
De quebra, ele
ainda fez uma pequena apresentação de uma terapia sonora com gongos alemães
(dezenas deles perfilados e tocados de forma rítmica com baquetas próprias),
algo cuja beleza e poder são difíceis de descrever. Mas cuja força todos nós
sentimos, intensivamente.
Agradecemos
a generosa canja, nos despedindo dele já por volta das 18h30, quando pegamos a
estrada de casa. Apesar de ser mais tarde do que eu havia planejado para
retornar, esse era um dos atrasos mais bem-vindos dos últimos meses numa
atividade do Ecoando.
Chegamos
por volta das 20h30 a Niterói, radiantes com o dia tão bem aproveitado e com a
estréia tão rica, interessante e bela deste roteiro na programação do Ecoando.
Aproveito
para agradecer às meninas superpoderosas, por sua alegria e pela possibilidade
da realização do passeio.
Também à
Lucimary, do Empório da Barreira, por seu papel de catalizadora de informações,
de promotora de turismo responsável na Serra do Piloto e de referência em
atendimento de qualidade ao visitante.
Igualmente
ao Marcelo, pela sua generosidade e disseminação de inovadoras técnicas
terapêuticas.
E, por fim,
em especial, à Miriam Bondin, pela sua paciência e propriedade em responder às
inúmeras perguntas que fiz, na tentativa de melhor compreender um pouco dos
complexos meandros da rica história daquele lugar e de seus caminhos.
Veja as
fotos desse passeio, em: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/
ou https://www.facebook.com/pg/ecoando.caminhadas/photos/?ref=page_internal.
Até a
próxima trilha!
Cássio
Garcez
Coordenador
e guia do Ecoando
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