02/11/2019 - ILHA DE JAGUANUM

Foto 1: caminhantes na trilha ao lado do canal entre Jaguanum e a Ilha do Bicho Grande, o trecho mais cênico do contorno daquela ilha.



Por conta do horário de verão alternativo do Ecoando (antecipação voluntária em meia hora ou mais em dias de caminhada do Ecoando, de outubro até fevereiro), embarcamos mais cedo na voadeira Pulga, do Edinho, às 7h30, em Itacuruçá.

A realização dessa atividade representava a forra que eu e outras participantes estávamos aguardando há exatos 12 meses, quando, em dezembro do ano passado, fui obrigado a cancelar a mesma atividade devido às previsões sombrias da meteorologia e aos riscos do trajeto mais exposto da travessia marítima.

Embora totalmente correta essa decisão (já que a mesma seguia à risca o protocolo de cancelamento em caso de dúvida), ela nos deixou inconsoláveis, pelo fato de o tempo ter aberto totalmente já no meio da manhã. Coisas das caminhadas.

Desta vez, mesmo com o tempo extremamente instável e já com chuva em algumas regiões (ao contrário do que estimara a maior parte das previsões), o grupo composto apenas por mulheres (as "meninas" superpoderosas, ecoandistas veteranas que já enfrentaram situações de instabilidade com uma coragem que muito homem não tem) concordou com minha proposta de pagarmos para ver.

Ou seja, caso fosse possível e seguro, faríamos a caminhada. Caso contrário, voltaríamos para casa, hipótese esta em que as participantes teriam direito ao ressarcimento integral do valor do passeio, além da cortesia no "tour" do Andarilho (a minivan do Ecoando). Venceu a primeira opção. Mas não sem um presente inesperado, para dar mais emoção.

A surpresinha veio depois de uma travessia bastante tranquila do canal - que teve até raios de sol -, na chegada à Praia da Pitangueiras, nosso local de desembarque: uma chuva grossa e repentina (foto 2)!

Foto 2: a chuva caindo firme na chegada à Praia de Pitangueiras.


Eram 7h47 quando o Edinho aterrou a voadeira o mais próximo possível de um telheiro construído na areia mesmo, o que nos permitiu fugir do toró antes de ficarmos encharcados. Um verdadeiro rebatismo de fogo - ou de água -, simbolizando a vitória sobre a frustração do ano anterior e do jejum de 3 anos sem caminhar em Jaguanum.

Com a diminuição da chuva, após meia hora de espera, começamos a caminhar munidos de nossas capas que guardamos na mochila, já na subida do primeiro trecho, com a estiagem. Lá em cima, quando era possível ver a Ponta da Pombeba - esporão arenoso que sai da Restinga da Marambaia - observamos o tempo abrir cada vez mais.

Assim como na Ilha de Itacuruçá, que havíamos visitado no sábado anterior, também em Jaguanum havia muitas casas novas e em construção, confirmando o crescimento populacional nesse lugar. Por sorte, as alterações nos caminhos, em função desse adensamento, não eram tão graves quanto naquela. Daí, o guia teve dificuldade em achar o rumo certo apenas uma vez, ao contrário da anterior.

Na Praia de Cabaceira (foto 3), reduto de caiçaras, fui contando a história dessa gente que ocupa há séculos a região que vai do Sul do Rio de Janeiro até o norte de Santa Catarina, e que se caracteriza por um conjunto de "valores, visões de mundo, práticas cognitivas e símbolos compartilhados que orientam os indivíduos em suas relações entre si e com a natureza" (Elias Fajardo, em trecho do livro "Mamanguá - berçário marinho e reduto tradicional de caiçaras", de Paulo Nogara).

Foto 3: rancho, canoas e petrechos de pesca artesanal de caiçaras, na Praia de Cabaceiras.


Continuando a falar com o grupo sobre essas populações tradicionais, elenquei algumas de suas marcas registradas, como: a associação entre pesca e agricultura, a importância do cultivo da mandioca e fabricação de farinha, o valor dado às relações sociais com a família e o grupo a que pertencem, a reciprocidade e a solidariedade na vida cotidiana, a pouca importância dada à religião e ao casamento, e o apego ao lugar, à praia onde cada um nasceu. E também a crença no sobrenatural, como sereias, almas penadas e mulas-sem-cabeça.

Formados da miscigenação entre o colonizador, o negro, o índio e piratas e corsários europeus que viveram na região, o povo caiçara tem suas origens no século XVII e sua cultura consolidada entre os século XIX e meados do século XX.

Com o avanço da especulação imobiliária sobre áreas por eles ocupadas, além da criação vertical de unidades de conservação da natureza, que desconsideraram seu direito secular de uso das mesmas (as quais se mantiveram preservadas justamente por serem os caiçaras seus guardiões há tanto tempo), suas populações têm diminuído drasticamente. Assim como tem crescido a descaracterização de seu modo de vida pela influência de religiões pentecostais e neopentecostais, a sua aculturação aos modos de vida de turistas e a degradação do meio ambiente de que dependem.

No entanto, a partir das últimas décadas, alguns de seus representantes - com a ajuda de universidades, ONGs e militantes socioambientais - vêm conseguindo resgatar, reconstruir e fortalecer a identidade caiçara - que tem na resistência um de seus maiores símbolos.

Voltando à caminhada, na Praia da Várzea, além das belas paisagens marinhas, dignas de um quadro, identificamos uma árvore de fruta-pão, espécie da família morácea, gênero artocarpus (prima da jaca, pois) e que é a base da alimentação de povos ilhéus da Polinésia.

A esse propósito, há três filmes que têm como tema uma interessante história a respeito dessa árvore: São eles: O Grande Motim, de 1935 e sua refilmagem em 1962 (este estrelado por ninguém menos que Marlon Brando), e Rebelião em Alto Mar, de 1984 (com Anthony Hopkins e Mel Gibson), que é um remake dos anteriores.

Aproveitei para contar ao grupo a sinopse deste (a que vai a seguir é do site Adoro Cinema, que dá menos spoiler a quem tenha interesse em assistir).

"Em 1789 um navio inglês, o HMS Bounty, empreendeu uma viagem até o Taiti para conseguir mudas de fruta-pão, que seriam largamente cultivadas para alimentar os escravos. O tenente William Bligh (Anthony Hopkins), comandante do Bounty, começa a agir de forma cada vez mais despótica, impondo castigos cada vez mais duros para a tripulação. Isto faz com que Fletcher Christian (Mel Gibson), o melhor amigo de Bligh, comande um motim, mesmo sabendo que este ato poderia ser punido com o enforcamento." (Disponível, em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-30276/).

Às 10h e pouco, chegávamos à Praia da Catita, outro reduto de caiçaras onde existe uma bela capela dedicada a São Pedro, padroeiro dos pescadores, construída no final do século XIX. Lá também existe uma escola municipal muito bem cuidada e com um mural que retrata a riqueza ecológica marinha, indissociavelmente ligada àquelas crianças, além da riqueza histórica da região (foto 4).

Foto 4: a escolinha e seu mural bem condizente com a cultura marítima, pesqueira e histórica da região.


Foi ali, há coisa de 20 anos, que consegui carona de volta ao continente na traineira que faz o transporte dos alunos, todos eles ilhéus, durante o reconhecimento que fiz desse roteiro. Verdadeiro privilégio foi tal oportunidade de conhecer de perto o modo de vida dessas crianças, cuja lembrança que guardo delas é de vivacidade, alegria e educação.

Ficamos ali por alguns minutos, curtindo a paz e a refrescância desse lugar ora batido pelo vento sudeste.

Às 10h30 chegávamos à protegida Praia do Sul (foto 5), que tinha apenas uma família se banhando em suas límpidas águas verde-esmeraldas. No canal entre Jaguanum e a Ilha da Marambaia, que víamos há algumas dezenas de metros da areia, era possível identificar as marolas encarneiradas do vento que agora não nos alcançava mais, devido à "sombra" dos morros florestados de nossa ilha. Daí, com essa deixa e o aquecimento da caminhada, foi partir quase imediatamente para dentro d'água.

Foto 5: banho de mar na Praia do Sul.


Neste local, uma moradora chamada Dona (ou Tia) Conceição ganhou fama com seus bolinhos de arraia, que mais parecem bacalhau, cujo sabor tivemos a oportunidade de conferir com os pés na areia e sob a sombra de uma frondosa amendoeira. Pena não haver o bobó de fruta-pão, outra iguaria produzida por essa senhora, pois não era época do fruto.

Tomamos um delicioso banho de mar nessa praia, que estava inacreditavelmente ensolarada e com vistas amplas de ilhas, do continente e de lajes. Além da Marambaia, também víamos as ilhas do Papagaio, da Saracura, do Bernardo, do Vigia Grande e Pequena, e outras. Embora quase toda oculta por uma densa nuvem, conseguíamos igualmente identificar a Ponta de Castelhanos, na Ilha Grande, onde se situa o canal que alimenta com águas oceânicas a baía homônima e a de Sepetiba.

Saímos dali às 11h45. Paramos num mirante (foto 6) que descortinava uma das melhores vistas da Ilha da Marambaia (cujo ponto culminante tem 647 m de altitude) e de um tantinho de sua restinga (que tem algo em torno de 40 quilômetros), onde relembrei um pouco da história do Rei do Café, o comendador Joaquim José de Souza Breves, não por acaso o maior escravagista e uma das pessoas mais ricas que o Brasil já teve. O mesmo havia comprado aquela ilha em 1856, ou seja, seis anos após a proibição do tráfico negreiro (Lei Eusébio de Queiroz), para insuspeitamente ser usada como esconderijo e área de "engorda" de escravos traficados.

Foto 6: participantes e a visão da Ilha da Marambaia, à retaguarda, entre outras.


Abolida a escravidão, Breves doou aquelas terras a seus ex-escravos que lá habitavam, mas verbalmente apenas. E, ao que tudo indica, também sem a aprovação de sua mulher que, ao receber a Ilha como herança, a vendeu para uma companhia (Cia. Promotora de Indústrias e Melhoramentos) sem respeitar o desejo e a palavra de seu marido, que viera a falecer em 1890. Com a liquidação da companhia, a ilha passou para o Banco da República do Brasil que por sua vez a vendeu à União, em 1904, que acabou repassando tudo à Marinha dois anos depois. Esta construiu em uma de suas praias a Escola de Aprendizes Marinheiros, em 1908. Tudo isso à revelia dos ex-escravos de Breves, que continuavam morando lá.

Durante o Estado Novo, parte da Marambaia foi repassada para a Fundação Abrigo Cristo Redentor, em 1939, que construiu a Escola de Pesca Darcy Vargas, um modelo de instituição de assistência social e educacional para populações que historicamente tinham sido relegadas à própria sorte e à marginalidade, como os próprios quilombolas (ex-escravos), além de caiçaras e pescadores artesanais.

A Escola de Pesca Darcy Vargas não se dedicava apenas às suas funções de complexo industrial e profissionalizante, mas também ao abrigo e assistência de seus alunos e famílias. "Havia em suas dependências dois dormitórios com duzentos leitos cada, subdivididos em camarotes, com quatro beliches de ferro, cobertos de lona, sala de diversões, biblioteca, barbearia, anfiteatro, lavanderia mecânica, enfermaria, com salas de isolamentos, gabinete dentário e médico, grupo escolar com instalações para 220 meninos, residência dos religiosos que administravam os serviços do hospital e da maternidade", conforme relata a historiadora Miriam Bondim (disponível, em: https://www.facebook.com/GuaraciRosaHistoriador/posts/a-escola-modelo-do-brasil-da-ilha-de-marambaiapor-mirian-bondimum-das-iniciativa/1920945787930085/).

Mas não parava por aí. No local, segundo Bondin, havia também frigorífico, fábrica de redes de pesca, fábrica de gelo, fábrica de sardinha em conserva com azeite e tomate, laboratório para o aproveitamento dos subprodutos dos peixes, fábrica de farinha de peixe, estaleiro naval, oficina mecânica de motores marítimos, usina de luz elétrica, e etc. Havia residências com esgoto, água encanada e energia elétrica destinadas aos pescadores e operários, uma cooperativa, uma escola primária, a Igreja Nossa Senhora das Dores, com clausura para religiosas, um parque recreativo para as crianças, um pequeno hospital, uma farmácia, além de padaria, hortas e espaço para pecuária. Esses últimos, para abastecimento dos operários, técnicos e alunos.

Prossegue a historiadora: "a Escola de Pesca, motivo de orgulho do governo de Getúlio Vargas e de Mangaratiba, marcou presença nas páginas dos principais jornais do país, sendo apontada como escola modelo do Brasil. Jornalistas acompanhavam as visitas de autoridades nacionais e internacionais à escola, noticiavam o encantamento desses visitantes pela organização por suas produções no preparo da pesca da rica Baía de Sepetiba"

Com o fim da Era Vargas, em meados da década de 1950, a empreitada entrou em decadência, conseguindo ainda uma breve sobrevida como colégio interno e não mais como escola de pesca, entre 1965 e 1970, época do Regime Militar. Mas o golpe de misericórdia se deu em 1971, quando as atividades educacionais foram definitivamente encerradas e todas as benfeitorias passaram para a Marinha, que criou o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (Cadim) dez anos depois.

A partir daí, os quilombolas passaram a sofrer humilhações, ameaças de expulsão e outras injustiças dos militares, que os consideravam meros e incômodos invasores. Como esta é uma história longa e espinhosa demais, convido o leitor a assistir ao documentário "É minha terra..." (disponível, em: http://www.uff.br/observatoriojovem/materia/%C3%A9-minha-terra-document%C3%A1rio-sobre-o-quilombo-da-ilha-da-marambaiarj), uma produção do Observatório Fundiário Fluminense e do Observatório Jovem da UFF, bastante esclarecedor. Lembrando que, os conflitos fundiários entre essa comunidade e a Marinha foram em tese resolvidos com a titulação de terras em outubro de 2015 (conforme notícia, disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/2015/10/familias-quilombolas-da-ilha-da-marambaia-no-rio-recebem-titulos-de-terra).

Por volta das 12h, chegávamos à povoada praia de Calhaus (foto 7), que não é boa para banhos devido ao esgoto que é despejado in natura em suas águas. Algo difícil de conceber para um lugar paradisíaco como este.

Foto 7: a Praia de Calhaus.


Depois de mais alguns minutos de trilha e chegávamos à Praia do Araçá (foto 8), que estava bem movimentada, com lanchas fundeadas ao longo de toda a sua orla, assim como um saveiro. Por isso, tomamos muito cuidado no banho de mar, haja vista o histórico de atropelamentos e acidentes feios provocados por barcos a banhistas, nas praias dessa ilha. Felizmente, conseguimos curtir em paz nosso banho, saindo de lá por volta das 13h15.

Foto 8: Praia do Araçá, vista da trilha.

Na praia da Estopa (foto 8), que chegamos por volta das 13h45 depois de enfrentar um trecho abandonado de trilha, também não quisemos cair ou sequer parar um pouco que fosse, por causa das músicas a toda altura vindas das lanchas. E pensar que conheci esse lugar como um reduto de paz e silêncio, há 40 anos...

Por sorte, o próximo trecho (foto 1) seria um dos mais bonitos, interessantes e silenciosos do percurso, onde o trajeto segue ao longo do canal entre as ilhas de Jaguanum e do Bicho Grande, esta totalmente florestada. Parávamos bastante para curtir os visuais, tirar fotos e ficar aproveitando aquela quietude.

Chegamos de volta à praia de Pitangueiras pouco antes das 15h. Hora de nos congratularmos e de nos reabastecer (foto 9) no mesmo bar onde fugimos da chuva, no início.

Foto 9: o reabastecimento à beira-mar.


Reembarcamos às 15h30, pegando o canal bem picado das marolas criadas pelo vento sudeste (foto 10), agora bem mais forte. Por sorte, eu havia alertado as participantes sobre isso, que tiveram assim a chance de se prevenir e aos seus pertences com capas e sacos plásticos. Mesmo assim e ao contrário da chuva do início da caminhada, ficamos ensopados! Devia estar escrito que assim ficaríamos, de uma forma ou de outra...

Foto 10: o retorno com o mar picado e vento forte, cuja foto não dá nem ideia do desafio.


Chegamos à Praia Grande de Itacuruçá às 16h, sãos e salvos. Ainda demoramos um pouco para nos arrumar e às nossas coisas, antes de pegar a estrada e chegar em casa ainda de dia. Aliás, um grande dia!

Veja o relato desta atividade, em: http://www.trilhasdoecoando.blogspot.com. E, para ver as fotos completas, acesse: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/.

Até a próxima trilha!

Abraços,

Cássio Garcez
Coordenador

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