CACHOEIRA DO CAMPO - 14/12/2019
Foto 1: as duas cascatas acima da Cachoeira do Campo. |
Começamos a
caminhada por volta das 8h, com o tempo bem fechado e com previsões de chuva
fraca mais tarde. Por sorte, apenas um participante amarelou e deixou de curtir
as delícias de um banho de cachoeira em plena floresta urbana - uma das maiores
que existem.
Levamos
pouco mais de uma hora e meia para chegarmos à Cachoeira do Campo (foto 2), que estava
tão deserta quanto sua trilha - tanto na ida quanto na volta. Coisa rara em um
sábado de pré-verão carioca.
Foto 2: caminhante na Cachoeira do Campo. |
Mesmo com o
tempo fechado e até algum chuvisco, fazia calor. Daí, quase todos no grupo
tomaram banho nesta queda de 8
metros de altura, cercada de matas bem preservadas do
Parque Estadual da Pedra Branca. Ficamos algo em torno de 40 minutos ali, antes
de subirmos até as quedas d'água que ficam a montante, no mesmo rio, o Grande.
A poucos
metros daquela que acabávamos de visitar, as duas cachoeirinhas, embora
menores, eram melhores para o banho (foto 1). Daí, mesmo quem não tinha entrado na água
antes, agora não resistiria.
Começamos o
retorno ao meio-dia mais ou menos, parando numa travessia do mesmo Rio Grande
para fazer o exercício do silêncio - dinâmica em que o grupo permanece quieto
por aproximadamente 3 minutos.
Deve ter
sido aí que alguns de nós pegamos carrapatos dos animais de carga que são puxados
por sitiantes, que ainda habitam determinados locais naquelas matas. E sobre os
quais repassei ao grupo informações levantadas por Caio Briso - misto de
jornalista, poeta e quase antropólogo - na fantástica reportagem O Sertão Carioca,
publicada no Jornal O Globo, em 04/10/2016 (disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/o-sertao-carioca-17660130).
A mesma
retrata muito bem o modo de vida e o imaginário de moradores das matas da Pedra
Branca, como observa-se no trecho extraído da matéria:
"Bananeiras
dançam quando o vento sopra no alto da montanha, onde ninguém tem pressa,
porque o tempo, esse inimigo, lá em cima é companheiro. Ao encontrar árvores no
caminho, a rajada de ar vira sussurro triste, sinfonia de troncos, galhos e
folhas se debatendo na escuridão. É hora do jantar. Sobre a mesa, um prato de
batata doce, uma travessa de alface, uma moringa d'água. Tudo daquela serra: a
batata, o alface, a nascente. O fogão a lenha é lareira improvisada em dias
frios. A luz vem de uma vela e uma lamparina que iluminam o rosto de Arnaldo
Avelino da Costa, talhado na roça, enquanto ele envolve o acordeon no peito nu.
O ar tem cheiro de querosene. Seu Arnaldo fecha os olhos e as mãos de pegar
enxada amolecem. Da sanfona sai um lamento sertanejo. Dá vontade de chorar."
A matéria
gira em torno de cerca de dez famílias que moram em casas de pau-a-pique,
distantes entre si, em condições de vida parecidas com as de séculos passados,
naquelas encostas. Nessas moradias não há energia elétrica, a iluminação é à
vela e lampiões, as notícias chegam pelos radinhos de pilha e o meio de
transporte é o burro. Tudo isso a alguns poucos quilômetros de um dos bairros
mais populosos da cidade, Campo Grande.
Essas
pessoas, que cultivam bananas, caquis e outros produtos da terra para
sobreviver, são remanescentes do chamado Sertão Carioca, denominação dada à
Zona Oeste até a década de 1950, quando a área ainda era definida como rural
pelo município. Hoje, cercada por mais de 17 bairros, está essa ilha de Mata
Atlântica, preservada pelo Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), unidade de
conservação criada em 1974.
Descendentes
de famílias que se instalaram naquelas matas há 100 anos mais ou menos - ou
seja, bem antes da criação do parque -, esses moradores têm seu direito garantido
de estar nessa unidade de conservação, embora precisem cumprir o que se chama
tecnicamente de termo de ajustamento de conduta. O mesmo, estabelecido pelo
Inea - órgão estadual que gere o PEPB -, lista uma série de normas e critérios
para que a permanência deles ali (que em tese é vedada pelo Sistema Nacional de
Unidades de Conservação, o SNUC) não se torne antagônica à preservação do
patrimônio socioambiental.
O que se
planta lá em cima mudou durante as décadas: antes era o café, depois a laranja
e hoje cada um planta o que quer. Caqui, quiabo, alface. Mas a banana prata é
de longe o carro chefe. Bichinho, sitiante que tem a moradia mais alta do Rio,
há mais de 800 metros
de altitude, inclusive vem diversificando a produção com banana-passa, vinagre
e até licor feitos de banana.
A psicóloga
Alice Alves Franco, em sua dissertação de mestrado em psicologia social pela
Universidade Federal Rural (UFRRJ), se refere a esta comunidade como "um caso
singular de grupo que conseguiu manter suas características, seus costumes e
até seu sotaque." E enfatiza que algumas famílias estão lá há 150 anos.
Segundo outro
morador, o português Tiago, a ocupação do lugar começou com um antigo refúgio
de índios picinguabas, ainda no século XIX, passando a receber imigrantes
europeus posteriormente, a maior parte agricultores, que vieram ao Rio em busca
de uma vida melhor.
Como é
comum a comunidades isoladas e imersas em ambientes naturais, o imaginário
desses habitantes é rico em histórias, mitos e mistérios.
Seu
Enedinho (Dino), por exemplo, conta que antigamente havia lobisomem na área, além
de assombrações - como uma mulher sentada numa pedra, no meio da trilha. "Tinha
que pensar forte em Deus para ela desaparecer. Mas acho que até eles foram
embora da serra."
Uma das
poucas mulheres que continuam na região, Sebastiana, filha de Dino e dona de
uma disposição de fazer inveja a muito desportista, também tem uma história
fantástica. Certo dia, quando os dois estavam voltando para casa, surgiu no
matagal um homem vestido de branco, abaixado, de cócoras. Quando Sebastiana
passou, o homem se levantou. "– Não sou mulher de ter medo, nem de
acreditar nessas visagens, mas só fiz correr.", segredou ela.
No entanto,
talvez o causo mais extraordinário daquelas bandas, seja o de Bichinho, um
virtual relato de abdução. Na forma de um sonho, era como se ele estivesse
morto, embora visse tudo com os olhos abertos. Num rompante, ele foi parar em
"um aparelho de vidro com duas pessoas dentro, um homem e uma mulher. A
máquina girava em alta velocidade. Ele fecha os olhos e volta a sonhar."
"– Eu
não tinha noção de como era o mundo. E eu vi o mundo. Eu vi a vida, as pessoas
iam me explicando tudo. Vi um mundo branco, de neve. Outro todo vermelho e
deserto. Chegamos a um lugar onde não havia sol, nem montanhas, nem bananal. Só
barro. A nave pousou e eu vi uns toquinhos de gente, tudo baixinho e cabeludo,
que zumbiam como abelhas. Tinha uma luz ao meu redor. Eu flutuava – recorda. –
Vou morrer um dia, mas sei que ainda vamos descobrir mundos diferentes do
nosso."
Terminamos
nossa caminhada às 14h, aproveitando para comer bolinhos de aipim do
"Seu" João, além de comprar bananas produzidas pelos sitiantes da
Pedra Branca (foto 3).
Foto 3: caminhantes comprando produtos da terra. |
Assim, além
da lavação do banho de cachoeira, vivenciamos e aprendemos um pouco da rica
história desse povo que ainda subsiste, como nos séculos passados, da terra, no
Sertão Carioca. E também levamos para casa algumas lembracinhas (os malditos
carrapatos) do quão dura pode ser essa vida...
Veja mais
fotos desse e de outros passeios do Ecoando, em: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/.
Até a
próxima trilha!
Abraços,
Cássio
Garcez
Coordenador
Comentários
Postar um comentário