TRAVESSIA PONTA LESTE-PRAIA DOS MACIÉIS - 15/02/2020

Foto 1: piscinas naturais da praia menor dos Maciéis, com a Ilha Grande ao fundo.



Mesmo sendo um daqueles dias em que quase todos os virtuais interessados num passeio extraordinário como este não poderiam participar, por uma curiosa conjunção coletiva de problemas ou compromissos (de saúde, trabalho, encontros sociais, etc.), eu, como guia e amante das caminhadas ecológicas, não iria ficar bem se não o realizasse.

No entanto e por sorte, dois ecoandistas da antiga apareceram a tempo e assim salvaram a atividade, mesmo com o grupo abaixo do limite mínimo de participantes. Ou seja, embora os honorários não cobrissem o custo da viagem, a mesma seria cumprida por pura paixão e afinidade ao que fazemos, além do compromisso com quem se dispôs a comparecer.

E pensar que tem gente que acha que nós, do Ecoando, ou estamos fora da realidade de mercado, ou queremos ficar ricos, por cobrarmos valores acima da média em nossas viagens. O que esse povo não consegue compreender é que, pelo fato de nossos grupos nessas atividades terem números de participantes extremamente reduzidos (de 3 a  6 integrantes), não há como cobrar menos e sustentar iniciativa como a nossa, mesmo sendo ela mais artesanal.

Fora isso, há também os diferenciais de nosso trabalho (entre eles, o atendimento personalizado ao ecoandista, as informações pesquisadas e repassadas com base em metodologia científica, o extremo cuidado com a segurança dos participantes e as ações em prol da ecologia - quase todas elas voluntárias), o que por si só já fariam valer o quanto pesa - digo, custa - nosso labor, mesmo que os grupos fossem maiores. Enfim, desabafo feito, voltemos ao relato da atividade.

O dia estava ensolarado e límpido, lavado das chuvas que vinham caindo desde o início da semana. Por isso, as paisagens estavam mais brilhantes, as matas mais verdejantes e o céu mais azul. E também as estradas não estavam tão movimentadas quanto costumam ficar nessa época. Em meio a tanta coisa boa para comemorar, lamentamos apenas não termos a presença de mais companheiros de trilha, para compartilhar a alegria de um dia tão perfeito.

Saímos de Niterói por volta das 5h30, pegando o nascer do sol alguns minutos depois, na Ponte Rio-Niterói. Chegamos a Ponta Leste, em Angra, onde começaríamos a caminhada, pouco menos de três horas depois, mesmo tendo parado em lanchonete de beira de estrada para tomar café e comer pães de queijo. A estrada recém-recapeada que começa na Rio-Santos e termina no TEBIG (Terminal da Baía da Ilha Grande, foto 2), contornando a margem leste da Baía de Jacuecanga, ajudou bastante nesse tempo bem rendido.

Foto 2: o Terminal da Baía da Ilha Grande, entre a enseada do Aniquim e a Ilha Grande.


Estacionado o Andarilho (a minivan do Ecoando) ao lado do terminal, adentramos a trilha às 8h30, após o bate-papo (preleção, onde o guia fala sobre o roteiro, cuidados para a caminhada ser realmente ecológica e segura, e aquecimento físico). Apesar da trilha ser bem agradável, os ruídos e cheiro de óleo que vinham do TEBIG nos incomodaram bastante nesses primeiros minutos de caminhada.

Também conhecido como Terminal Aquaviário de Angra dos Reis ou Terminal Marítimo Almirante Maximiano da Fonseca, o TEBIG foi inaugurado em 1977, inicialmente visando a importação de petróleo, atividade que foi substituída pelo transporte nacional deste produto. Desta forma, através de um oleoduto que acompanha grande parte da Rio-Santos (o ORBIG, que pode ser identificado pela faixa careca que corta as matas e morros, paralelamente à BR 101), o óleo ali desembarcado por petroleiros é conduzido até as refinarias de Duque de Caxias (RJ) e Gabriel Passos (MG). Além disso, o mesmo é utilizado como entreposto de exportação e cabotagem para terminais de menor porte, assim como para a produção de bunker (combustível de navios).

A existência dessa megaestrutura petrolífera no roteiro que acabávamos de começar podia ser uma presença feia e desagradável, mas eu não poderia deixar de repassar essas e outras informações a seu respeito, como costumamos fazer no Ecoando, de modo a incentivar a reflexão crítica nos participantes. Algo que diferencia uma verdadeira caminhada ecológica de outras iniciativas afins, como o ecoturismo e o montanhismo.

Dava para perceber que a trilha onde estávamos era na realidade uma antiga estrada, hoje descaracterizada por intervenções de engenharia evidentemente ligadas ao TEBIG, como canaletas de concreto, degraus e muros de contenção. Mas que, em determinados trechos, estava tão bem preservada e retomada pela mata que nem lembrávamos dessa ligação com o presente e com a indústria do petróleo.

Levamos menos de meia hora até o Forte do Leme (foto 3), fortificação aberta (ou seja, sem muralhas) construída entre 1908 ou 1911 (há controvérsia de datas), alguns anos depois do naufrágio do encouraçado Aquidabã, que ocorreu bem próximo dali, em 21 de janeiro 1906.

Foto 3: um dos poços de canhão do Forte do Leme.


Tal fortificação, muito pouco conhecida até de guias de turismo e aficcionados pela história regional e militar, resume-se a um complexo constituído por dois poços ocupados com enferrujados canhões Armstrong Withworth, 234 mm (construídos na Alemanha em 1901 e originários do próprio Aquidabã ou de seu irmão, o encouraçado Riachuelo), um quartel, que é ligado àqueles através de dois túneis, e outras benfeitorias - como paiol, construções auxiliares, píer e até cabeças de ponte de uma suposta ferrovia. Tais obras encontram-se espalhadas por uma área de pelo menos 200 metros quadrados, hoje engolidas pela mata.

O leito ferroviário - se é que era realmente essa a função do traçado hoje engolido pela mata - talvez tenha sido construído para transportar materiais e armamentos ao forte, ou quiçá interligar Angra dos Reis ao ramal de Itacuruçá, este inaugurado em 1914. Mas, como só encontrei menções a respeito deste projeto, persistem as dúvidas e a necessidade em se aprofundar as pesquisas.

Apesar do estado de abandono, o complexo militar surpreende por sua beleza e esmero nas obras (foto 4), assim como pela sua dificuldade de acesso (além da trilha, há uma estradinha precária que leva até lá) e por sua história pouco conhecida e mal documentada.

Foto 4: entrada do sistema de túneis, com as ruínas do quartel ao fundo.


Além da controvérsia de datas a respeito de sua construção, não se sabe com certeza quem foi seu construtor, qual teria sido o motivo real de sua existência, se teria sido obra do Exército ou a Marinha, e por que foi tantas vezes ativada e desativada até o fim de sua curta existência como organização militar, em 1950.

Como se não bastassem tantos temas de interesse e interrogações, a visão de uma parte da Baía da Ilha Grande e da própria ilha que dá nome ao golfo, ressaltavam ainda mais as belezas e os mistérios daquela obra militar, que visitamos centímetro a centímetro, analisando, contemplando e aprendendo com o que víamos e compartilhávamos.

Por volta das 9h e pouco, pegamos a trilha que passaria ao largo da Praia do Aniquim, pequena enseada onde se encontra o píer em ruínas que deve ter sido muito utilizado para embarque e desembarque de materiais e pessoal ligados ao forte. Mas não a visitamos, por conta do mato mais fechado para se chegar lá.

Continuamos, pois, pela trilha mais bem marcada, possivelmente outra rota igualmente utilizada pelos militares, haja vista as obras de engenharia encontradas pelo caminho e até num quintal de casa da praia maior. E que provavelmente ainda é usada por moradores mais mateiros dos Maciéis.

Só há dois trechos mais complicados nesta trilha, um em que o suposto antigo calçamento de pedras se tornou um leito irregular e escorregadio de rochas soltas, e uma passagem sobre matacão limoso e ladeado por buracões com algo em torno de 6 metros de profundidade cada. Por ser esta a passagem mais perigosa do roteiro, encordei os participantes, para garantir a segurança.

Depois daí, a trilha - bem menos complexa - se aproxima tanto do mar que era possível descer com facilidade até seus costões rochosos, como fizemos uma vez (foto 5). E onde descobrimos um muro de contenção do suposto leito ferroviário, com trechos escavados na rocha, vindo dos Maciéis, e que termina inacabado bem próximo de onde descemos ao mar. O que teria acontecido para a interrupção dessa obra? Quem a teria empreendido? Mais pano para a manga das pesquisas.

Foto 5: trecho onde a trilha mais se aproxima do mar.


Os visuais que tínhamos do mar e da Ilha Grande desse trecho da trilha, já teriam valido todo esforço do trecho caminhado. Mas havia mais, muito mais. Especialmente os banhos de mar em piscinas naturais de águas cristalinas e praticamente privativas.

Saímos da trilha às 10h35, onde se localizam as primeiras casas do núcleo habitacional dos Maciéis. Pegamos a íngreme estradinha e entramos em outra trilha, mais batida e cheia de lixo em seu início (lamentavelmente!), em direção à praia maior da dupla que leva aquele nome (foto 6), levando pouco mais de 15 minutos até lá. Mas deixamos para cair na água a partir da segunda praia, a menor e mais protegida, depois de mais 10 minutos de caminhada pela areia e por nova trilha.

Foto 6: caminhada pelas areias da praia maior.


Ambas as praias estavam desertas, sendo que a segunda ficou exclusiva para nós durante a hora e meia em que estivemos lá, lanchando, tomando banho de mar ou simplesmente apreciando sua beleza.

Essa prainha tem um cercado natural de rochas à sua esquerda (de quem olha para o mar), formando piscinas naturais de águas cristalinas (foto 1). À direita, há um pedaço mais amplo, embora também protegido pelos costões que a separam da praia maior (foto 7).

Foto 7: a praia menor. Ao fundo e à esquerda, a praia maior.


A cor da água era a mesma das praias da Ilha Grande voltadas para o continente: verde esmeralda, límpidas e translúcidas. E de temperatura perfeita, nem fria demais e nem morna.

Havia ainda um córrego desembocando nessa praia, cuja areia absorvia suas águas geladas e igualmente límpidas antes delas chegarem ao mar. Teve gente se esbaldando ali para tirar o sal e a areia monazítica (de cor preta, reputada como medicinal, e que se agarra aos pés), usando para isso um copo feito de folha, no melhor estilo nativo.

Ipaum Guaçu, topônimo original da Ilha Grande dado pelos Tamoio (a grafia correta é assim, no singular), parecia estar quase ao alcance da mão, de tão próxima (foto 8). Afinal, a distância que nos separava da Ilha do Macacos, o ponto insular mais ao norte daquela, era de aproximadamente 3 quilômetros apenas.

Foto 8: recorte das montanhas da Ilha Grande, ao fundo, com destaque ao Pico do Papagaio.


Se, num exercício de imaginação, essa visita tivesse sido feita há 18 mil anos, ápice da última glaciação (e, por conseguinte, da mais intensa regressão marinha desse período), poderíamos ir caminhando até lá (já que a linha da praia estaria situada há dezenas de quilômetros mar afora).

Já se a viagem no tempo voltasse 5.100 anos apenas, máximo da transgressão marinha (quando o nível do mar subiu por causa do aquecimento global natural e do consequente derretimento das geleiras), a praia onde estávamos estaria submersa há mais ou menos 5 metros de profundidade, assim como toda a linha de costa, segundo os geólogos.

Devido a essa grande quantidade de informações sobre aquele lugar, em especial no que se referia à Ilha Grande, este guia teve que fazer um formidável exercício de síntese, para não tornar passeio tão rico e agradável numa densa e arrastada aula ao ar livre. Mas, a contar com o interesse e o feedback da dupla, parece que aquele objetivo fora alcançado.

No retorno, paramos no canto leste da praia maior para mais banho de mar e relaxamento - ou para ficar lagarteando à sombra das inúmeras árvore (foto 9).

Foto 9: banho na praia maior.


Mesmo com uma massa maior de nuvens se formando sobre a Ilha Grande e também sobre nós, devido ao vento mais fresco e úmido de es-sudeste, o sol ainda estava forte e fazia calor suficiente para justificar o mergulho. Que foi ainda mais agradável, em depoimento de quem entrou na água.

No extremo oposto dessa praia, havia dois outros pequenos grupos de turistas, um de pescadores e outro que veio em voadeira desde Muriqui, há algumas dezenas de quilômetros a leste dali. E mais ninguém à vista.

Iniciamos a partida de volta pouco depois da 13h, desta vez pegando a estradinha (foto 10) ao invés da trilha. Levamos exatamente uma hora até o forte e mais meia hora até o Andarilho (a minivan do Ecoando). Nos trechos mais íngremes, diminuíamos bastante o ritmo, tanto por causa do fôlego quanto para não estragar o relaxamento deixado pelos banhos de mar.

Foto 10: o retorno pela estradinha, em trecho bem íngreme e insolado.


Mas o passeio ainda não havia terminado. Era a vez da visita ao monumento aos náufragos do Aquidabã, ali pertinho, que acessamos de carro.

Tal monumento (foto 11), erigido entre 1913 ou 1918 (há também controvérsia de datas, mas consideramos esta a mais confiável, por ser a informada pelo Inepac, que tombou-o em 1982), constitui-se de um obelisco de 15 a 20 metros de altura, em granito e concreto, onde em sua base existem 60 nichos com restos mortais de vítimas desse dramático acidente.

Foto 11: caminhante ao lado do monumento aos mortos do Aquidabã.


Considerado como "encouraçado de Esquadra" (foto 12), uma classificação militar que destacava-o como o mais importante navio da Marinha do Brasil à época de sua compra, em 1886, o Aquidabã foi construído no estaleiro inglês Samuda & Brothers, atuando com bravura em episódios históricos, como nos dois capítulos da Revolta da Armada, entre 1891 e 1894, quando chegou a ser parcialmente afundado neste último. Foi posteriormente recuperado e transformado em embarcação destinada a experiências em telegrafia sem fio.

Foto 12: gravura do Aquidabã. Fonte: Wikipedia.


Fundeado em frente à Ponta do Pasto (bem próxima à Ponta do Leme, onde se encontra o forte), junto com os cruzadores Barroso e Tamandaré, às 22h45 daquele 6 de janeiro de 1906, uma grande e inexplicável explosão partiu o navio ao meio e matou 212 de seus 310 tripulantes - entre eles seu comandante, oficiais de alta patente e parte da comitiva ministerial encarregada dos estudos que objetivavam a instalação de um novo Arsenal de Marinha, na Baía de Jacuecanga - razão da visita daquele comboio ao local.

Além do terror e da comoção do próprio acidente em si, que transformou o navio numa fatídica bola de fogo, há relatos de ataques de tubarão em meio ao caos de corpos, pedaços de carne humana e sangue espalhados na água.

Devido à grande dificuldade em se fazer o reconhecimento dos acidentados, a Marinha precisou criar um setor específico para isso, à época. No entanto, a contar com a grande quantidade de nichos sem nome no monumento, além da diferença entre o número de mortos (212) e aquele referente ao dos que estão sepultados ali (60), é bastante provável que muitos corpos não tenham sido reconhecidos ou sequer encontrados.

Em homenagem a essas vítimas, várias ruas, praças, bairros e até uma cidade em solo nacional foram nomeados ou renomeados com o nome do encouraçado. Além disso, a Marinha e a prefeitura de Angra realizam todo ano, em janeiro, uma cerimônia solene onde é depositada uma coroa de flores na base do monumento.

Os destroços do Aquidabã encontram-se a uma profundidade entre 8 e 18 metros, a poucas dezenas de metros do monumento, cujo local pode ser identificado do final da estradinha que liga este à Estrada da Ponta Leste - onde também estivemos (foto 13).

Foto 13: área do naufrágio do Aquidabã, vista de dentro do Andarilho (a minivan do Ecoando).


Mesmo com toda a dramaticidade desse episódio histórico e da perda de tantas vidas, o local onde está o monumento não possui aquele clima lúgubre e sombrio de um cemitério, o que poderia destoar do alto astral da caminhada e assim desmotivar a visita.

Pelo contrário: o local é cercado por um amplo gramado, há bosques e bancos sob a sombra das árvores, cavalos pastando e a visão do mar e de montanhas insulares e continentais.

Assim, a melancolia daquelas sepulturas e a triste lembrança do desastre são atenuadas por estas belezas naturais, o que confirmou o acerto de nossa esticada até lá. Afinal, conhecimento crítico de verdade não se resume a coisa bonita ou informação agradável apenas.

Antes de pegarmos a estrada em direção a Niterói, paramos num agradável restaurante da Ponta Leste (foto 14), colado à mata, onde comemos muito bem e a um preço justo. Alimentados de corpo e alma, retornamos felizes para Niterói, onde chegamos por volta das 18h.

Foto 14: boa comida, boa companhia e a presença da Mata Atlântica em agradável restaurante.


Agradecimentos à dupla, pela possibilidade da realização desse passeio e também pela simpatia.

Veja mais fotos desse e de outros passeios do Ecoando, em: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/.

Até a próxima trilha!

Cássio Garcez
Coordenador

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