TRILHA D'ÁGUA NO RIO DA DIVISA - 07/03/2020

Foto 1: ecoandistas em plena trilha d'água, no Rio da Divisa.



Devido à interdição do setor Pau da Fome à visitação, pela direção do Parque Estadual da Pedra Branca, tivemos que substituir o rio onde originalmente faríamos esta caminhada semi-aquática (o Grande, neste setor) pelo Rio da Divisa, no setor Vargem Grande da mesma unidade de conservação.

Mesmo já tendo caminhado por lá este ano, nas Cachoeiras no Vale do Gunza (o roteiro inaugural de 2020, do Ecoando), os trajetos seriam tão diversos que mesmo quem eventualmente tivesse participado daquele sequer notaria alguma semelhança.

Assim, iniciamos a caminhada pouco antes das 8h, seguindo pelo centenário Caminho do Cafundá. O dia estava ensolarado e claro, passando a nublado ao final do percurso. E com algum calor do final de verão ainda, o que facilitou bastante o momento em que adentramos o rio, que estava mais cheio devido às fortes chuvas dos dias anteriores. Curioso é que foi justamente por causa desses aguaceiros que muita gente acabou desistindo de participar, achando equivocadamente que a chuva iria continuar ou que ela teria causado algum estrago no trajeto.

Em determinado momento da caminhada, a estradinha vira trilha, passa pela placa que marca os limites do Parque Estadual da Pedra Branca (foto 2) e se torna mais agradável e bonita de andar. No primeiro acesso ao rio da Divisa, começamos a odisséia de enfiar pés e pernas na água e subir até onde fosse possível chegar (foto 1). Não sem antes, porém, repassar informações de segurança aos participantes, como: evitar colocar os pés em fendas, identificar e se desviar de pedras limosas, e atentar para a possibilidade de serpentes arborícolas em galhos atravessados no leito ou em suas margens.

Foto 2: placa que marca o limite do Parque Estadual da Pedra Branca.


E assim fomos nós, tateando o terreno submerso com nossos pés (devidamente protegidos por tênis ou botas), nos equilibrando entre ou sobre as pedras, e buscando acessos possíveis em meio aos obstáculos e galhos eventualmente encontrados no caminho das águas. Um baita exercício de concentração, foco e trabalho físico, cuja prova de seu sucesso foi o número zero de tombos. Parabéns, pessoal!

O ritmo da caminhada dentro do rio teve que ser naturalmente mais lento, tanto por causa da dificuldade do trajeto, quanto pela necessidade em se priorizar a segurança. Como a atenção precisava ser permanente para prevenir escorregões e tombos, parávamos a todo momento e por alguns instantes, para descansar, reforçar o foco e reagrupar. Somente quando encontrávamos um recanto mais bonito, ou uma cascatinha convidativa, parávamos por mais tempo para relaxar, contemplar ou tomar banho.

Após passarmos o ponto onde o rio Cafundá se une àquele onde estávamos, encontramos a cascata mais gostosa para banhos (foto 3), a qual desconhecemos o nome. A mesma tem algo em torno de 2 metros de queda forte, mas possível de se ficar embaixo sem risco, aproveitando a hidromassagem.

Foto 3: a deliciosa cascatinha antes do Bar da Nilza.


Dali faltava pouco para chegarmos ao Bar da Dona Nilza, próximo de onde estão os poços mais populares do Rio da Divisa, que a maioria dos frequentadores conhece como as cachoeiras de Mucuíba.

Neste local, que chegamos pouco antes das 11h, observamos mais amiúde o poder das chuvas que caíram durante a semana: o rio estava mais largo, passava por cima da ponte de concreto e suas águas haviam levado grande parte da vegetação que ficava em ilhotas próximas (foto 4). Além disso, a maior quantidade de água e o aumento considerável de seixos rolados no leito tornaram aquele lugar ainda mais bonito.

Foto 4: a ponte de concreto ao lado do Bar da Nilza, com água passando por cima, mais seixos rolados e vegetação aplainada pela enxurrada.


Continuamos caminhando por dentro do rio, até chegarmos a um simpático pocinho, onde outro caminhante se esbaldava sozinho. Como seria mais complicado vencer o trecho posterior pelas pedras, pegamos a trilha e andamos poucos metros até o Poço do Pedrão, onde tomamos mais um banho (foto 5).

Foto 5: banho no Poço do Pedrão, com águas mais claras e volumosas, e seixos "lavados".


O lugar também estava bem diferente em relação a janeiro, dando a exata impressão de que havia sido lavado. Isso porque, além do caudal maior e da água mais clara, os seixos movidos pela enxurrada recente estavam limpos de todo o limo, parecendo que haviam sido escovados. Uma delícia de se ver. A partir dali, fomos encontrando mais gente, em pequenos grupos.

Depois do banho neste poço, subimos pela trilha até a Cachoeira da Laje (foto 6), onde só um participante quis entrar, talvez porque as outras caminhantes já estivessem satisfeitas de tanta água. Eram 12h15 quando começamos a descer de volta aos carros.

Foto 6: o Poço da Laje, onde somente um participante quis entrar.


Como fizemos um caminho diferente, passamos em frente à escolinha comunitária e ao bar Tô na Boa, exemplos de iniciativas de sucesso de moradores do Quilombo Cafundá Astrogilda, onde caminhamos quase o tempo todo nele.

A escolinha (foto 7), trata-se de um espaço de compartilhamento de saberes - muitos deles tradicionais - e solidariedade, criado em junho de 2018 por uma das netas de Astrogilda da Rosa Ferreira Mesquita (a matriarca que deu nome ao quilombo), Maria Lúcia Mesquita Martins, que o mantém com recursos da própria comunidade.

Foto 7: a escolinha comunitária do Quilombo Cafundá Astrogilda.


Já a segunda iniciativa, capitaneada pela chef Gisele Mesquita Martins, filha de Maria Lúcia, funciona há 6 anos como algo mais que um restaurante, pois além de ser uma referência em gastronomia naquela área, também emprega dezenas de moradores do quilombo.

Aproveitei e contei aos participantes a história desse espaço de resistência, que surgiu quando Astrogilda, escrava liberta, junto com seu marido, Celso dos Santos Mesquita, buscou abrigo nas matas daquele pedaço do Maciço da Pedra Branca, ainda no Século XIX.

A matriarca era parteira e também rezadeira, além de ter mantido com o marido um centro de umbanda, em 1920, que já não existe mais. Diante do avanço da urbanização, por um lado, e do discurso do preservacionismo (que em linhas gerais defende que a natureza preservada não pode ter gente morando dentro), por outro - ambos ameaçando a centenária permanência da comunidade no local -, os moradores se reuniram, ganharam o apoio de acadêmicos (que produziram estudos comprovando ser aquele realmente um quilombo) e se organizaram para resistir às pressões e se fortalecer culturalmente e sustentavelmente. Em 2013 sua luta culminou com o reconhecimento de sua originalidade pela Fundação Palmares.

O Cafundá Astrogilda é um dos quatro quilombos existentes no município e um dos dois situados no Maciço da Pedra Branca (o outro é o do Camorim).

Embora o guia precisasse chegar logo em casa para trabalhar nos preparativos da caminhada do dia seguinte, era irresistível a tentação de comer os pastéis e outros quitutes servidos no Tô na Boa. Até porque havia uma mesa nos chamando para ficar, coisa rara já naquele horário, devido ao sempre grande movimento no local.

Enquanto aguardávamos nossos pedidos, notei que uma moça que conversava com o pessoal da mesa vizinha poderia ser a Gisele, dona do restaurante. Bingo! Tivemos assim a honra de conhecer essa guerreira, que esbanja carisma, simpatia e força, além de ouvir algumas histórias bem interessantes sobre a comunidade e também traçar projetos de possíveis parcerias futuras (foto 8).

Foto 8: ecoandistas e a chef Gisele (de blusa preta), neta de Dona Astrogilda, matriarca do quilombo que leva seu nome, em abraço no restaurante Tõ na Boa.


Devoramos nossas refeições, que estavam como sempre irretocáveis. De quebra, ganhamos da Gisele uma cortesia de bolinhos de chuva, deliciosos, iguaria que não por acaso tem relação com a cultura negra e com a culinária afetiva (aquela que nos remete a lembranças queridas, geralmente da infância).

Segundo o folclorista Câmara Cascudo, tal bolinho teria nascido nas mãos das escravizadas, inspirado em um tradicional doce português. 

Mas há uma versão mais fantasiosa que diz que o nome do doce vem de um episódio perdido no tempo em que uma mãe de crianças entediadas com a chuva que as impedia de brincar no quintal, resolveu inventar essa mistura de farinha de trigo, ovos e leite frita em óleo, e recoberta com açúcar e canela, para entreter a molecada. Por isso o nome, bolinho de chuva.

Fomos para casa com a alma lavada pela caminhada semi-aquática, com o estômago forrado com delícias culinárias e culturais, e com a sensação de termos aproveitado da melhor forma possível as oportunidades de troca, aprendizado e entretenimento daquele dia.

Só ficamos com pena daqueles que desistiram de participar, por causa de medos e avaliações equivocadas.

Veja mais fotos desse e de outros passeios do Ecoando, em: https://www.ecoando.eco.br/galeria-de-fotos/.

Abraços,

Cássio Garcez
Coordenador

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